domingo, 19 de outubro de 2014

Raúl Antelo no MAR,


Oficinas de Imaginação Crítica n.2


Tatu, Museu de Arte do Rio

Jornal O Globo, 17 de outubro de 2014
Exposição no MAR toma imagens da caatinga e do futebol para refletir sobre arte e nacionalidade
Com curadoria de Eduardo Frota e Paulo Herkenhoff, mostra "Tatu" termina neste sábado
POR MANOEL RICARDO DE LIMA*
Na canção “Retórica sentimental”, Belchior, nosso bartleby e gênio, escreve duas de suas linhas mais inventivas acerca de uma ideia de lugar: “Moro num lugar comum, junto daqui, / chamado Brasil”. Essa condição estabelecida e fixada pela distância, entre um incomum e um junto daqui que se despedaça no nome próprio (nação, valor, fronteira etc), só pode ser minimamente reengendrada, como diversa e adversa, se percorrida na sua largura de deslocamento e, principalmente, descolamento. A curadoria da exposição “Tatu: Futebol, Adversidade e Cultura da Caatinga”, no Museu de Arte do Rio (MAR), feita pelo artista Eduardo Frota e pelo diretor do museu Paulo Herkenhoff, que teve início no meio da Copa do Mundo, impõe uma singularidade exemplar em torno dessa questão.
Eles anotam que a redução do tatu-bola a um mascote azul e símbolo do futebol global esfacela, de todo modo, a perspectiva de um pensamento simultâneo a partir da adversidade como história e cultura de e para a resistência. Note-se aí uma resistência que vem, sobremaneira, na figuração da caatinga, não como circunstância regional ou representação, mas como presença e empenho, e no jogo de futebol — não este que se contorce como um espetáculo burocrático, enfadonho e morto, um negócio para a TV, mas o de um jogo tenso e torto que pode operar modulações no corpo político e no corpo da cultura como uma heterotopia —, a partir de um pensamento-tatu que, por sua vez, persegue a esferologia da carapaça amarronzada do bicho vivo em seu pacto com o chão. Logo, de fato, um pacto e uma composição com a terra, porque ele não sabe cavar. É uma sobrevivência que se arma na sua metamorfose reversível, ser-bola, e uma reviravolta nesse traçado da terra arrasada, porque o que está em xeque é um imaginário que ainda vem, como adverso, do semiárido.
É possível ler e ver aí, na importância do pensamento dos curadores e na escolha desmedida que fizeram para os trabalhos que compõem a exposição, o quanto se pode reimprimir a imagem do que está em extinção (com e como o tatu-bola). É uma arqueologia da força da arte que, de algum modo, como série imprevista, procura desfazer o que se costuma chamar de “cultura nacional brasileira” quase sempre armada a partir da relação íntima entre certa autoridade de espaço (apenas como e onde há uma maior circulação do dinheiro) e a gangrena da cultura. Relação que, sabemos, provoca um monopólio da memória (e da história) e uma sustentação ideológica que reproduz os hábitos de um Estado autoritário que subvenciona a cultura como forma de manter um patrimônio seguro através de um ou dois rótulos formadores da nacionalidade exaltada. O futebol, grosso modo, é um caso exemplar. A menos quando, na contramão, fato raro, alguém articula praticamente sozinho um esforço inteligente, caso do goleiro Aranha, muito recente.
Assim, a exposição é composta por uma lista aberta, vária e extensa, com trabalhos de Antonio Bandeira, Aldemir Martins, Benjamin Abrão, Bispo do Rosário, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Letícia Parente, Montez Magno, Graciliano Ramos, Nelson Pereira dos Santos, Lula Wanderley, Paulo Bruscky, Fernando Lindote, Solon Ribeiro, Rodrigo Braga, os povos Bakairi, Bororo, Guarani-Mbya, Krahô, Urubu entre tantos outros, para tentar apontar uma outra temporalidade para qualquer imagem do adverso. A reunião desses trabalhos, numa espécie de série forçada e imprevista, abre a imagem como uma ficção crítica e nos dá a ver e ler a mancha do indizível. Quando a imagem não é apenas o que aparece, o visível, mas sim e sempre ANTES e DEPOIS do visível. Quando ela escancara um buraco no visível para a dimensão do imaterial, do não-visto. Desse modo, com esse caráter impreciso, o nenhum já repicado por Mário de Andrade, ficamos diante de uma possibilidade crítica da arte que pode, de alguma maneira, desmontar a opção mais constante por uma clareza expositiva para assim desfazer a cena de sempre que nos leva invariavelmente ao mesmo lugar e a uma reduplicação do mesmo.
Por isso, me parece, é que Raúl Antelo chama atenção para o quanto não é possível esperar uma unificação nacional dos acontecimentos históricos porque toda organização dos elementos heterogêneos numa ficção de origem é “resultado da violência e não do desdobramento progressivo do sentido histórico”. A proposta seria, diz ele, tomar o caráter flutuante e sui generis do pensamento da arte e com a arte para a permissão, uma permissão àquilo que é a sua potência, o seu Dichtung, o seu DIZER: dizer quase tudo; ou seja, “no espaço da ficção [crítica] cabe, com efeito, não apenas o discriminado em outros espaços, mas o indizível e o rumor, o obtuso e o inconfessável, babel e algaravia.”
Diante da imagem provocada por essa exposição e do gesto de Eduardo Frota e Paulo Herkenhoff com o tatu-bola, bicho-vivo, temos uma espera e um apontamento: quando a arte é capaz de escavar uma sobrevivência para desarticular o conhecido?

* Manoel Ricardo de Lima é poeta, professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, "Geografia Aérea", "Jogo de Varetas" e "A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo". É roteirista do longa-ficção "Linz – quando todos os acidentes acontecem", dirigido por Alexandre Veras

Os piores dias de minha vida foram todos,

Jornal O Globo, 11 de outubro de 2014

Escrita em modo de exílio

Montaigne escreve que sob a influência da imaginação é possível que o corpo possa se erguer muitas vezes do seu lugar, engendrando assim, praticamente, um estado de êxtase. Esta imagem aberta é sempre uma boa deriva de acesso aos livros de Evandro Affonso Ferreira: quando a imaginação se constitui como uma atividade libertadora para o corpo. É a presença, num traçado em espiral, do que gira em torno de seu novo livro, “Os piores dias de minha vida foram todos”, narrado por uma mulher doente que segura o corpo num exílio forçoso, porém convicto com a imaginação: “Sei que neste quarto-desamparo procuro levar a imaginação até seu limite — jeito de driblar entre aspas desintegração contínua delas minhas entranhas” ou “Jeito é caminhar imaginosa nua pelas ruas desta cidade para fingir que ainda estou viva. Ilusão, sim, mas benéfica e libertadora”.

Mas esse modo de exílio já está em todos os livros anteriores, desde “Grogotó!” (2000), quando nos apresenta seu móbile de desespero a partir das vidas desengraçadas de seus personagens, uma espécie de estado de tensão recorrente em que lança todos eles. E mais interessante que, num excesso de imaginação próprio dos infames, quase todos têm obsessão severa pela coleção despedaçada. Assim, o traço miniaturizado que entra em cena como ação e gesto nesses personagens, para deslocar seus corpos inoperantes, é a composição de um catálogo de fracassos, de sobras etc., numa tentativa de “rastrear as próprias perdas, para escapar às armadilhas da solidão”. O que também podemos ler nos livros mais recentes, numa operação entre escavar e recordar: o fortíssimo e denso “Minha mãe se matou sem dizer adeus” (2010) e o hábil jogo entre o destrambelho e o perecível de “O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam“ (2013).

Em “Os piores dias...”, diante do malogro da vida, entre doença e reclusão, a personagem se ergue quando “pensa ver coisas”, se seguimos Montaigne, isto é, se ergue quando se vê numa deambulação livre da imaginação, mesmo que tenha o corpo imobilizado “horas seguidas sem entrar ninguém para limpar minha boca babujada de saliva; onde fica cada vez mais difícil acomodar-me à condição humana”. Deambulação imaginativa que lembra Manuel Bandeira na construção de sua paisagem fabulosa, promessa para sua adolescência interrompida pela doença, a Pasárgada em que se pode “viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar”.
No livro de Evandro, a utopia modernista de Bandeira se converte na “metrópole apressurada” que é a cidade de São Paulo entre suas marcas e monumentos. Ao lado de espaços assinalados pela mesmice que os apaga, aparece também a cartografia íntima e desejante da narradora, devassada por “vírus diabólicos, de vitalidade assombrosa, obstinados em suas maldades, imoladores de vítimas humanas”. É como se tentasse lançar seu corpo vivo e despido no mundo para correr todos os riscos de contágio, o que só é possível através da imaginação: “vontade súbita de sair sem destino [...] vencer distância; simular propósitos; fingir adventos; ir para desconcertar os planos de volta; não entrar duas vezes na mesma paisagem; conservar-me afastada deste-daquele quarto fúnebre; viagem utópica; viajar para correr perigo nas curvas acentuadas; arriscar-me”.
O livro desenha ainda uma suposta conversa entre essa mulher doente e Antígona, figura da mitologia grega, que comparece como uma espécie de imagem invertida, inalcançável, desejada e evocada, a luminosa carpideira dos desafortunados. Antígona, cuja morte é afirmação de vida e de coragem, opõe-se à mais essa vida desbotada e desistida, sem feito ou bravura, muito ajustada ao enorme espectro de personagens desvalidos que, sempre ao som de um jazz, o autor cataloga desde “Grogotó!” e que, aos poucos, solta no mundo, livro a livro, numa seriação curiosa de sua única história possível.

* Júlia Studart é poeta e professora da Escola de Letras daUniRio. Publicou, entre outros, “Vidas desengraçadas — O gesto de Evandro Affonso Ferreira” (Dobra Editorial, SP]) e “Nuno Ramos” (Coleção Ciranda da Poesia, EdUerj)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

ciranda, Nuno Ramos


Entrevista com Júlia Studart

Editora da Uerj, 29 Julho 2014

1 - Qual foi o maior desafio de trabalhar com o material literário de Nuno Ramos? (aliás, foi vc que o escolheu para tema de sua análise?)

O fato é que eu fazia um pós-doutorado na Unicamp a partir do trabalho do Nuno Ramos, com bolsa de pesquisa financiada pela FAPESP. E antes disso o trabalho dele era muito presente nas minhas pesquisas, nas minhas leituras diárias, porque me interessa muito. Tudo isso o deixou muito perto da mão. Sem contar que, acho, o trabalho do Nuno merece uma apresentação ou uma publicação de mais fôlego a mais gente, construção de acessos, sentidos etc. Foi assim que propus ao Ítalo (Moriconi), coordenador da Ciranda, que topou prontamente. E aí começou o meu impasse e desafio: pensar a complexidade e as modulações do trabalho expandido do Nuno dentro de uma coleção dedicada à poesia. Há mesmo uma impossibilidade de fixá-lo, de reduzi-lo a uma forma, a uma ideia de gênero, de verso etc. O trabalho do Nuno, prioritariamente, muda de forma, não se fixa, está muito mais perto de uma forma-informe, de uma forma fraca, e essa foi sem dúvida uma dificuldade: dar a ver essas modulações por dentro da forma, a potência dessa metamorfose que atravessa tanto os seus livros quanto o seu trabalho como artista visual. Indistintamente.

2 - Anteriormente, você já acompanhava o trabalho de Nuno Ramos?

Já acompanho há algum tempo, desde a publicação do primeiro livro, "Cujo", em 2003 o meu livro favorito. Livro que tenho, porque ganhei dele, aquela primeira edição numerada, linda e rara, num papel e capas especiais. Talvez depois disso é que tenha ficado mais atenta ao seu trabalho de artes visuais, até que em 2013 transformei tudo isso em pesquisa de pós-doutorado.

3 - E a antologia de versos que é apresentada no título. Como foi este processo de escolha?

Bem, como toda antologia e acho o termo um tanto problemático, prefiro pensar numa reunião espontânea, apenas , existe aí muito dos meus interesses, das coisas que mais gosto no trabalho do Nuno entre invenção e algumas insistências, que gosto de chamar de 'imagens intermitentes', que são recorrentes no seu trabalho. Também tentei, minimamente, dar a ver as variações do seu texto até o ainda inédito "Sermões", experiência extremamente distinta dos outros livros.

4 - E como se chegou à inclusão de material de Sermões?

Nuno Ramos possui alguns livros publicados, mas que felizmente não se deixam fixar tão facilmente [principalmente se pensarmos em categorias como a de gênero literário]. Já que a ideia da coleção é dar uma pequena mostra do trabalho com a linha, com o verso, com o poema em prosa e com o pensamento, falei do livro-antologia para o Nuno e perguntei se ele não estava com nada pronto ou se trabalhava em algum projeto novo relacionado à poesia o que daria outros sentidos tanto para a minha leitura crítica, quanto para a seleção de textos. Foi assim que me disse do seu "Sermões" e que gentilmente me cedeu para leitura e uso de alguns fragmentos. O bacana foi que Sermões terminou por provocar uma boa conversa e troca entre nós dois acerca de outras questões.

5 - Você acredita que existe algum tipo de diferença em relação a autores que se expressem apenas com a literatura para aqueles como Nuno Ramos que utilizam várias formas como a artes plásticas, músicas, etc? (aqui nesta pergunta me refiro ao processo de criação. Por exemplo, se vc acha que o artista plástico Nuno Ramos poderia influenciar o escritor Nuno Ramos)

Faz toda a diferença. Por mais que o próprio Nuno procure separar essas duas instâncias [escritor e artista visual, sem contar as suas outras tantas atribuições], seu trabalho é absolutamente impuro, contaminado. Alguns trabalhos de arte incorporam textos seus ou de outros poetas, como Manuel Bandeira e Drummond, e seus livros se armam como grandes instalações movediças, extremamente plásticas, instáveis. Ou seja, Nuno, mesmo sem que o saiba [se é mesmo que não sabe], arma uma grande transparência entre os seus trabalhos, todos eles, e cria uma espécie de ambiente, como parece estar definido já em Cujo: A transparência é uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria uma espécie de ambiente. O que dizer de um livro como "Cujo", um misto de instalação, poema, livro de notas e procedimentos de trabalho? Sem contar que Nuno Ramos é um excelente leitor de nossa melhor tradição, carrega uma biblioteca no corpo [o que me interessa muito para o que penso e para o que faço no meu trabalho] e faz com que seu trabalho seja de fato muito singular no meio de toda essa nossa produção muitas vezes incipiente e pobre em invenção.